Coletivo teatral da comunidade de Heliópolis produz conteúdo crítico e compartilha realidades periféricas
Por Maria Fernanda Barros
A concepção do teatro como um potente mecanismo de libertação e de transformação social, defendida por teatrólogos brasileiros importantes como Augusto Boal, é extremamente necessária para a construção de uma arte emancipatória realizada pelas periferias. Foi a partir da vontade de denunciar a realidade social de uma das maiores favelas do Brasil, Heliópolis, localizada na zona sul de São Paulo, que surgiu, nos anos 2000, a Companhia de Teatro Heliópolis.
O coletivo é formado por jovens da comunidade que, por meio das artes cênicas, são porta vozes das problemáticas que envolvem a população marginalizada. Diante do cenário de profunda desigualdade que assola o Brasil, os artistas de Heliópolis se apropriam da arte de maneira sensível para abordar temáticas periféricas. Em entrevista para o Central Periférica, Miguel Rocha, diretor das peças do grupo, manifesta: “a possibilidade do encontro, de se encontrar, de se partilhar experiências, de denunciar e de provocar, eu acho que esse é o sentido de fazer arte”. Forma-se, assim, um teatro feito com propósito: atingir o espectador e estimulá-lo a agir.
Em um cenário como o atual, em que a cultura popular se encontra extremamente ameaçada, principalmente devido ao corte de verbas destinadas à área, fazer teatro é uma constante batalha. Mas para Miguel foi muito importante a periferia de Heliópolis ter ocupado esse espaço cultural: “Eu acho que o teatro é difícil em todos os sentidos, para todo mundo, mas acho que existe sim uma dificuldade maior pra quem está nas periferias da cidade. Mas acho que com o tempo a gente foi conquistando os espaços por via de apoios públicos e que foram se ampliando. Eu acho que nós somos uma companhia que lida com o público da cidade como um todo”.
A base da dramaturgia da companhia são as experiências sociais na maior periferia brasileira. “A gente desenvolve uma pesquisa estética do grupo a partir das nossas vivências em Heliópolis, da nossa percepção como morador de Heliópolis. E aí, em confronto ou na composição, juntam outros pontos de vista, a partir de pessoas que contribuem com a gente, que são do teatro e que são das artes”, relata o diretor. Dessa forma, a arte do grupo teatral protagoniza uma visão constantemente silenciada pela mídia dominante, provocando o espectador e fortalecendo a luta contra a opressão. No mais novo espetáculo da companhia, Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos, estrelado na Casa de Teatro Maria José de Carvalho, sede do coletivo no bairro Ipiranga, a crítica social se faz presente durante toda a peça e clarifica que um teatro politizado é amplamente essencial para a luta pelos direitos das minorias sociais ao levantar a pauta do encarceramento na cena teatral.
Ao tratar as questões referentes ao sistema penitenciário, a peça dispõe de um olhar atento às estruturas que moldam o cárcere e explicita o caráter opressor do encarceramento. Um sistema que oprime exclusivamente minorias sociais, sistemicamente exploradas e desamparadas. Um sistema que desumaniza os detentos, mas que não enxerga as razões que os levaram até a prisão. Um sistema declaradamente racista e classista, que existe fundamentalmente para criminalizar as periferias brasileiras. Para esmiuçar esses aspectos que permeiam o cárcere, insere-se na cena a voz dos detentos, que narram suas histórias que os levaram até a casa de detenção. Mas o conteúdo da dramaturgia ultrapassa a crítica às estruturas nocivas do sistema carcerário: a peça introduz na narrativa a perspectiva feminina acerca do encarceramento.
Maria das Dores e Maria dos Prazeres são irmãs e são duas mulheres negras, periféricas e trabalhadoras. “Eu não queria ser braba”, disse Maria das Dores em cena, já que frequentemente precisa ser forte para suportar as dores inerentes a sua vida. Ambas tiveram a vida atravessada pela prisão de três homens importantes em sua família: Gabriel, filho de Maria das Dores e sobrinho de Maria dos Prazeres, universitário com o sonho de ser desenhista, detido injustamente, o marido de Maria dos Prazeres e o pai das duas irmãs.
O sistema é de fato cruel com os homens encarcerados, mas e quanto às mulheres que ficam? As Marias, que também simbolizam a realidade social de muitas mulheres pertencentes às periferias desse país, precisam lidar não só com a dor da distância e o medo de ter pessoas que amam em um ambiente extremamente bárbaro, mas também com as violências referentes ao procedimento de visita à penitenciária. Maria das Dores relata seu sofrimento quando a revista do presídio impediu sua entrada com o bolo de aniversário que preparou para seu filho. Maria dos Prazeres expõe sua aflição por ter tido que levar sua filha àquele lugar e no momento que quis levá-la embora, não pôde pois seu marido se recusou a parar o sexo e deixá-la sair. Além disso, ela conta casos de mulheres que foram estupradas coletivamente e utilizadas como moeda de troca quando foram visitar seus maridos na casa de detenção. A “mulher porta de cadeia” é profundamente violentada pelo encarceramento, mesmo sem estar encarcerada e por isso, o espetáculo não permite que essa agressão às mulheres periféricas seja invisível ao espectador.
Outro fator de imensa relevância na peça é o resgate da ancestralidade africana, que também dá nome ao espetáculo. A dança e a musicalidade resgatam a figura da deusa dos ventos, Iansã, Rainha Oyá que se transformou em búfalo quando Ogum estava caçando. Na forma de búfalo, Iansã representa a coragem feminina, a força e a liberdade. Dispõe da energia de reconstrução, que sucede a tormenta da tempestade. Assim, os conhecimentos ancestrais exalados na peça simbolizam o movimento, a resistência e a emancipação.
É dessa maneira que a denúncia social e a cultura negra e periférica estão manifestas na arte da Companhia de Teatro Heliópolis. Por meio da sensibilidade e da vivacidade do teatro, o grupo aproxima os espectadores da mensagem e da crítica que está sendo transmitida. Miguel afirma que o teatro viabiliza conexões: "Acho que o teatro é mais do que nunca a arte do encontro, dos artistas com o espectador, é ali no calor, é naquele momento. Ele só acontece nesse encontro do público com os artistas que estão ali compartilhando aquelas memórias, aquelas histórias, aquela narrativa. Existe um diferencial nesse sentido porque é esse encontro, essa troca de energia, de olhar, de sensações”.
Esse coletivo teatral nos mostra a capacidade do teatro de tornar vivas as pautas silenciadas e atingir profundamente o público. Em cartaz até 5 de junho de 2022, a peça Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos ocorre nas sextas e sábados às 20h e nos domingos às 19h, na Casa de Teatro Maria José de Carvalho. A reserva antecipada dos ingressos está disponível no Sympla.
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