A mercantilização do acesso às modalidades esportivas e seus respectivos locais de prática colocam em risco o esporte como uma atividade destinada ao bem estar físico e social
Time de remo da Escola de Comunicações e Artes na raia do CEPEUSP
[Reprodução: Acervo Ecapivaras]
Por Bárbara de Aguiar Diogo Spinelli e Fernanda Zibordi
A ideia do esporte como entretenimento movimenta enormes quantidades de pessoas e dinheiro, como exibe o levantamento publicado em junho deste ano pela Pluri Consultoria sobre a arrecadação com bilheteria em 2022, período em que o Flamengo atingiu a marca de R$100 milhões de reais na venda de ingressos. Entretanto, o acesso ao entretenimento esportivo não é igual para todos e tende a excluir grupos periféricos, o que contribui para a instauração de um ambiente elitizado e que cada vez mais se afasta das camadas menos abastadas da sociedade.
As transmissões esportivas, por exemplo, representam uma parcela desse problema de acesso ao esporte como lazer: grande parte das transmissões são concentradas em planos de TV por assinatura ou serviços de streaming. Enquanto nos primeiros o número de pagantes diminui a cada ano que passa, os segundos são responsáveis por um crescimento do monopólio do entretenimento esportivo. “Tem os dois lados, um é o de quem produz o serviço, as equipes e organizações esportivas que vêm a possibilidade de ganhar mais, e o outro é o ponto de vista do consumidor, e aí sim, há uma uma lógica perversa, pois essas organizações acabam oferecendo o seu produto para aquelas pessoas que têm uma maior capacidade econômica para adquiri-los.”, disse o professor da Faculdade de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EFEE/USP) Ary Rocco.
Dados disponibilizados pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) mostram que, em 2022, a quantidade de assinantes de TV paga atingiu as taxas mais baixas em uma década e sofreu a diminuição de 1 milhão de assinantes em comparação ao ano anterior. Os motivos para isso se relacionam tanto aos altos preços cobrados pelas operadoras quanto à explosão de consumo dos streamings, que crescem em popularidade e também em valores. Ao se somar os preços de assinaturas mensais das principais plataformas transmissoras de programação esportiva (HBO Max, Star+, Prime Video e Globoplay), o preço se aproxima de R$140,00, o que seria equivalente a mais de 10% do valor de um salário mínimo. Para famílias que sobrevivem com até menos que esse salário, conseguir acompanhar campeonatos de diversos esportes acaba se tornando um desejo inviável.
Outras alternativas, tais como as transmissões em TV aberta, são comuns no Brasil e contribuem para distribuir de maneira mais igualitária os eventos esportivos. No entanto, na maioria das vezes, o esporte que ocupa a maior parte da programação nas residências brasileiras é um só: o futebol. Outras práticas, como vôlei, basquete e handebol tem seu espaço reservado na grade das grandes emissoras, mas o horário das competições são menos acessíveis ao público que trabalha ou estuda. As partidas clássicas, por exemplo, costumam ser agendadas em horários fora do comercial, justamente para angariar mais público físico e telespectadores nas telas de casa. “Alguns estudos comprovam que as gerações mais novas já não têm o mesmo interesse pelo futebol do que as outras gerações. Existem modalidades que, se não buscarem esse interesse do público mais jovem, correm o risco de não terem praticantes no futuro e o negócio se tornar insustentável.” complementa o professor Ary.
O problema com eventos presenciais se estende para além dos horários incompatíveis com a jornada de trabalho do brasileiro. Algumas vezes, as competições são organizadas à noite ou nos finais de semana, mas o trajeto longo e cansativo desanima o torcedor. Outro ponto que impacta no acesso aos jogos presenciais é o valor cobrado no ingresso: em agosto de 2022, o valor médio para uma partida de futebol era de R$40,00, cerca de 12,32% maior que o do mesmo período em 2019, como revela pesquisa da Pluri Consultoria. Atualmente, o valor da entrada inteira para o setor de pior visão do campo está em aproximadamente R$80,00, cadeiras com maior visibilidade podem chegar a até R$150 reais. E esses valores inacessíveis para grande parte da população são referentes a partidas no esporte mais popular do país, ou seja, em categorias mais próximas à elite, como partidas de basquete, Fórmula 1 e tênis, o ingresso torna-se ainda mais caro. No GP do Brasil em São Paulo, por exemplo, o menor valor de entrada é R$790,00 e o maior alcança R$16.320,00.
Impedimento não é só no futebol
A elitização do meio esportivo vai além dos problemas enfrentados na posição de espectador, já que potenciais atletas de baixa renda também sofrem limitações — materiais e culturais — de praticar modalidades esportivas com qualidade. Compra e manutenção de equipamentos são alguns dos fatores.
Esgrima, tênis, canoagem e ginástica são exemplos de esportes que normalmente necessitam de grandes investimentos financeiros. Por conta disso, eles acabam tornando-se modalidades de difícil e restrito acesso, concentrando mais pessoas de classe alta que são capazes de arcar com os custos. Christian Delphino, diretor da modalidade remo na ECAtlética, relata a diferença estrutural entre os times privados e os universitários que utilizam o Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP), já que os últimos não contam com nenhum financiamento externo: “Os equipamentos em si não são dos melhores, principalmente quando comparados aos dos times que utilizam a estrutura da raia e o cais. É algo bem desigual. Nós utilizamos o mesmo espaço, um local público aberto a todos que vem sofrendo uma precarização apenas para usuários da rede pública. Os clubes têm os próprios barcos, nas próprias garagens e os próprios instrutores. Isso diz muito, também, sobre a acessibilidade do esporte.”
O Favela Tênis & Cultura, um projeto realizado no Rio de Janeiro no Complexo do Alemão, tem como objetivo ir contra a elitização e trazer o tênis para os jovens periféricos. Aulas e equipamentos são oferecidos de forma gratuita para mais de 60 alunos, que aprendem sobre a prática do esporte e a transformação social através dele. Isso ganha importância porque mesmo com a existência dessas iniciativas que buscam democratizar o acesso a esportes financeiramente caros, há também o estigma cultural nocivo de que certas modalidades não são destinadas a todos.
O CEPEUSP conta com quadras esportivas para diversas modalidades. [Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]
Outro problema, marcante em grandes centros urbanos, é o risco da permanência de áreas esportivas comunitárias. A importância de quadras em espaços públicos vai além da promoção de lazer e bem estar para a vizinhança ao redor: muitas vezes, esses espaços são a única opção dos moradores de ter contato com algum tipo de atividade esportiva. O CEPEUSP é um grande exemplo de infraestrutura que tem o objetivo de oferecer oportunidades de integração e recreação pelo esporte, mesmo não atendendo completamente a comunidade externa da universidade. “Normalmente quem participa mais é quem já está integrado aqui na USP. Às vezes, até o público interno não sabe das modalidades que o CEPEUSP oferece. No caso das lutas, é uma modalidade caríssima para se fazer em um ambiente de academia pago”, afirma Rodrigo Arita, professor de karatê no centro esportivo da universidade.
Para o mestre de karatê, o principal problema relacionado ao uso do espaço esportivo é a falta de divulgação sobre quem pode ter acesso aos cursos oferecidos: “Nós temos extrema dificuldade pelo fato das pessoas acharem que na USP, uma universidade pública conhecida pela questão de ser elitizada, pessoas externas não podem nem frequentar o espaço público. É como se fosse um clube privado, mas a gente sabe que não é”.
Para Ary, o esporte é dividido em duas esferas: o setor público e o privado. Este último prefere o esporte de rendimento, que vira produto de plataformas de streaming, e que, consequentemente, as pessoas precisam pagar para assistir. A esfera da pública deveria, segundo ele, permitir o maior acesso das pessoas às atividades físicas e ao esporte. “O esporte no Brasil tem um modelo que está muito associado a quem pode pagar. Quem pode pagar com uma academia, quem tem condições de estar na Universidade de São Paulo e usar suas instalações. Então é preciso mudar esse cenário e a gente só consegue com políticas públicas”, diz o professor.