Confira, através de depoimentos, como a pandemia afetou o processo criativo de poetas periféricas
Por Eslen Brito
A pandemia de Covid-19 afetou muitos — senão todos — setores da sociedade. Nas periferias, os desafios foram diversos, mas não ficaram restritos às esferas sanitária e econômica: a cultura também sofreu. O acesso das periferias à literatura, historicamente prejudicado pela baixa disponibilidade de bibliotecas, foi agravado quando, no início da pandemia, as bibliotecas fecharam e, desde então, não reabriram. Para Rejane Barcelos, poeta conhecida como Rainha do Verso, essa ação é reflexo de um projeto do Estado.
“Os acessos da periferia à literatura são sabotados. O sistema não quer ver a periferia se informando porque sabem a força que um levante da periferia teria na nossa sociedade. Eu moro em um dos maiores complexos de favelas do Brasil, o Complexo da Maré, e aqui só tínhamos uma biblioteca, que fica no território de uma facção rival à maioria dos territórios da Maré. A prefeitura não resolve isso. As bibliotecas foram as primeiras a fechar e as últimas a abrir. Isso não é por acaso, é proposital”, explica.
Ela, que participa de slams — batalhas de poesia recitada — e de outros projetos culturais, conta que a força da oralidade na literatura periférica se deve a duas razões. Primeiramente, à ancestralidade das tradições orais dos povos indígenas e dos africanos trazidos forçadamente ao território americano. Em segundo lugar, ao histórico de negação de educação e de literatura escrita às populações marginalizadas brasileiras.
Rejane explica também que a diminuição dos convites para eventos atingiu significativamente a renda de artistas populares. Ela, que tem a literatura como principal fonte de renda, afirmou que atualmente tem mais preocupações financeiras na busca pela complementação de renda.
“Meu trabalho era feito na rua, no transporte público, e, com o lockdown, isso foi prejudicado. Tive minha agenda de eventos cancelada e, como sou artista independente, isso me prejudicou muito. A literatura é a maior parte da minha renda, mas ainda tenho que complementar.”
“Viver somente de poesia ainda é um sonho bem distante.”
Já Andrea Bak, atriz, ativista e poeta do Slam das Minas RJ, acredita que a pandemia atinge também a capacidade de produção dos artistas, em razão dos reflexos das incertezas desse contexto na saúde mental. Ela conta ainda que, dentre as dificuldades de reconhecimento e, portanto, de remuneração, há o racismo do mercado editorial.
“Por ser preto e indígena, você encontra dificuldades no mercado, seja ele qual for. Mas principalmente no mercado racista da literatura, você não tem espaço. Quando vemos a taxa de escritores pretos, indígenas e pobres que têm seus trabalhos publicados publicados, ela é completamente inferior à de pessoas brancas e de classes econômicas favorecidas.", relata.
“Fica difícil manter a sanidade mental porque, quando você quer viver da arte, como você sobrevive com ela?”
Para Rejane, as dificuldades de reconhecimento no meio artístico atravessam não só o racismo, mas também os estereótipos que enquadram a poesia marginal em temas e linguagens específicos, como se o poeta marginal não pudesse abordar assuntos variados, além de uma vivência periférica por vezes estigmatizada.
“A minha escrita não transpassa uma dor visceral e não faço dos meus poemas um panfleto de dor. Eu acho que o poema marginal muitas vezes ganha mais espaço quando você coloca suas dores à venda, mas uma coisa que eu decidi é que não vou panfletar dor”, conta.
Em resumo, a desvalorização das produções artísticas periféricas é produto de uma sociedade que não olha para as favelas e subúrbios como pólos de produção cultural. É naturalizada a ausência de ações promotoras de cultura nas periferias e, assim, torna-se mais difícil questionar a escassa oferta de lazer e espaços culturais nessas regiões. Diante disso, a arte marginal que brota das periferias resiste contra a maré de violências simbólicas.
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