Alterações são iniciativas das editoras para acessibilizar as obras para novo públicos
Por Bárbara de Aguiar e Diego Facundini
Agatha Christie é apenas uma de vários outros autores com obras revisadas [Imagem 1: Wikimedia Commons]
No final de março, o britânico The Telegraph revelou que diversos livros da escritora Agatha Christie serão republicados em formato revisado, removendo ou alterando linguagem e passagens consideradas racistas ou ofensivas. Com mudanças que vão desde a retirada de termos preconceituosos até a reescrita de trechos problemáticos, as novas edições publicadas desde 2020 pela editora HarperCollins passaram pelo escrutínio dos chamados “leitores de sensibilidade”, profissionais encarregados de apontar pontos potencialmente sensíveis ou ofensivos nos livros.
Tal acontecimento não é isolado: em tempos recentes, têm-se observado diversas tentativas por parte de editoras para que obras já consagradas e notadamente problemáticas tenham sua linguagem adaptada para as sensibilidades do mundo atual. Mais recentemente, obras de autores como Roald Dahl (A Fantástica Fábrica de Chocolate) e Ian Fleming (Saga 007) passaram pelo mesmo crivo. No contexto brasileiro, livros de Monteiro Lobato passaram por polêmica parecida em 2020 após o anúncio de que reedições curadas por sua neta, Cleo Monteiro Lobato, removeriam diversas instâncias de linguagem preconceituosa e racista do texto original.
De acordo com Marcos Napolitano, doutor em história social e professor na USP, o que está sendo tratado aqui deve ser diferenciado de um revisionismo histórico propriamente dito: “acho que são duas coisas diferentes. A revisão histórica, se respeitadas as regras básicas do método historiográfico (debate com pares, análise criteriosa de fontes primárias, exposição objetiva e crítica dos resultados da pesquisa), sempre contribui positivamente para o debate e para a ampliação do conhecimento sobre o passado.”, disse ao Central Periférica.
Surge, também, a nova posição do “leitor de sensibilidades”. Frequentemente pertencentes a minorias sociais, estes profissionais, dotados de uma consciência social e experiências pessoais notáveis, são encarregados de olhar criticamente e ler entre as linhas, isto é, encontrar instâncias problemáticas nas obras de forma a sugerir uma possível correção. Tal processo já se tornou lugar comum em grande parte das editoras, principalmente no que diz respeito a obras novas; o diferencial, agora, tem sido este escrutínio aplicado a obras já há muito lançadas e consagradas.
Para Carina Oliveira, educadora de origem Pataxó formada pela UFRJ e divulgadora da literatura indígena, os leitores de sensibilidade tem sim sua importância social: “Contar com a presença de tais sujeitos é compromisso político tanto com a difusão das narrativas quanto ao reconhecê-los protagonistas”.
A educadora também afirma que as obras pertencentes a contextos históricos específicos servem para a difusão de violências simbólicas, e defende uma solução: "acredito que um caminho seja a correção no texto - e nota de rodapé incluindo justificativa antirracista enquanto contraponto.”
Marcos Napolitano defende que cada caso deva ser tratado por agentes envolvidos no processo. Ele propõe que “um livro de Monteiro Lobato voltado para crianças, dentro de uma política nacional de literatura nas escolas, deve adaptar, ou mesmo suprimir, passagens muito agressivas às minorias”, ao mesmo tempo que defende edições separadas com notas de rodapé explicativas para um público adulto. Enfatiza, também, a diferenciação entre obras literárias e mera propaganda: “No caso de obras de propaganda ideológica extremista e de caráter racista, não sou a favor de distribuição comercial (ex. Mein Kampf, de Hitler).”
No entanto, da mesma forma que o filósofo marxista Walter Benjamin, em sua célebre frase, já afirmava que “não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”, o historiador alerta para o quão fugidia a definição do que é “problemático” pode ser: “O grande desafio é que se aplicarmos este tipo de revisão censória em massa, quase nenhuma obra de arte do passado recente ou distante sobreviveria ao escrutínio moral ou ideológico da agenda atual”. E ainda afirma que os mesmos mecanismos revisórios podem ser utilizados para interesses não necessariamente progressistas: “a extrema direita também vai reivindicar a supressão e a revisão de livros que eles julgam agressivos, por motivos diferentes da luta contra o preconceito e agressão às minorias”.
Carina Oliveira defende que a urgência maior deve ser na difusão da literatura indígena via também políticas públicas, ação que atua como contraponto e luta antirracista. Segundo ela, “o mercado talvez esteja mais preocupado com a publicação de obras com temática indígena do que talvez em pensar no antirracismo. Nós indígenas de fato falamos a partir de um pertencimento e defendemos o marcador ‘literatura INDÍGENA’ (diante de tantas urgências) - no entanto, podemos e devemos ocupar outros lugares. Essa também é uma luta antirracista”.