A supervalorização simbólica da carne nas comunidades carentes se tornou um empecilho para o avanço da luta pelos direitos animais
Por Mariana Krunfli
Vaca em cercado (Reprodução/Mariana Krunfli)
Com o crescente aumento do preço da carne, se torna uma dúvida o porquê de tal alimento ser tão requisitado nas periferias. No ano passado, parte da população passou a recorrer, até mesmo, a restos de açougue, como ossos e pés de galinhas, para garantir algum alimento de origem animal. Mas, em um mundo em que a alimentação vegetariana se mostra mais barata e nutritiva que a onívora, por que ela ainda não se espalhou nas comunidades de baixa renda?
O difícil acesso à educação alimentar e os hábitos enraizados podem ser considerados os grandes empecilhos para o avanço do vegetarianismo na periferia, que ainda parece irreal para muitos no meio. Porém, o vegetarianismo e, até mesmo, o veganismo, podem sim, ser um hábito para as pessoas de baixa renda. Assim provam Shazam e Paçoca, do canal no youtube “Vegano Pobre”, que mostra como é possível montar pratos acessíveis e nutricionalmente completos, se colocando como exemplos.
Em entrevista ao Central Periférica, os criadores do canal, que antes da pandemia já eram ovolactovegetarianos, contaram que reduziram os gastos com a alimentação em 75% ao se tornarem veganos, mas destacaram os empecilhos para mudanças de hábitos alimentares dentro da periferia: “É muito difícil uma pessoa de comunidade de baixa renda conseguir pesquisar, sair da zona de conforto, sair da bolha, e enfrentar todo o preconceito e a cultura que tem em volta deles”. Segundo pesquisa do IBOPE em abril de 2018, apenas 14% da população brasileira se declara vegetariana, demonstrando que os alimentos de origem animal ainda têm um grande peso no consumo do Brasil.
Estes hábitos alimentares também são frutos da cultura brasileira, cujos pratos mais característicos levam carne em sua composição e se originaram nas classes populares. A feijoada, por exemplo, é um prato que leva diversas partes da carne do porco na receita, datando do período de escravidão no Brasil e marcando presença até hoje nas mesas brasileiras. Apesar de algumas religiões condenarem o consumo dessa carne, como o judaísmo e o islamismo, a porcentagem de adeptos dessas crenças no Brasil não passa de 1%, como indica pesquisa do Datafolha.
Feijoada [Foto: Shutterstock]
Outra tradição, não só do Brasil, mas de grande parte do mundo, é a carne como centro de celebrações. No Natal, qual é o grande alimento que ocupa as propagandas, as cozinhas e as mesas? Já dá até para imaginar aquela cena clássica do peru ou do chester com uma família sorridente em volta, agradecendo por mais uma refeição, ou melhor dizendo, um banquete.
Família em ceia de natal [Foto: Shutterstock]
Esse sentimento de gratidão, de fartura e de conquista foi sempre associado à carne e, justamente por isso, ela é tão valorizada nas periferias, pois se tem carne na mesa, tudo isso vem junto. Na entrevista, Shazam trouxe um exemplo: “A Paçoca vem de uma família bem humilde, que ainda mora em um bairro periférico, no interior de São Paulo, de frente a uma biqueira. Então lá, quando tinha churrasco na frente do bar, dentro de um latão de metal, assando uma costela, meu Deus! Eles eram considerados os mais ricos do bairro todo”. Apesar dos altos preços, ainda existe uma grande resistência por parte da classe popular de substituir tal produto por outros de origem vegetal, como citam os criadores do Vegano Pobre: “Eles deixam de comprar outra coisa para ter a carne”. Isso também leva à procura de derivados e partes menos consumidas que, apesar de não serem propriamente carne, ainda trazem a mesma segurança, já que fazem parte do mesmo símbolo que conecta tradições e garantem a chamada “refeição completa”.
Esta, por sua vez, está tão enraizada na sociedade que construiu um preconceito acerca do vegetarianismo e do veganismo, considerados insuficientes para uma vida saudável ou, até mesmo, elitistas. Porém, o casal prova o contrário de ambos, ao sobreviver com metade de um salário mínimo, adotarem a alimentação vegana, e ainda disporem de força e energia para o trabalho braçal: “A gente mora na roça. A gente trabalha o dia inteiro, carrega tora de eucalipto nas costas, carrega bambu, pega barro … E a gente percebe que não é necessário ter uma alimentação com alimentos de origem animal”.
Shazam e Paçoca com churrasco vegano (Reprodução/Via Instagram)
Apesar de sobreviverem com pouco, os dois ressaltam: “O veganismo pode ser tão caro quanto você queira”. Isso se mostra explícito em contrastes entre produtos veganos nos supermercados, onde um quilo de tofu, dificilmente encontrado, chega a R$40 e um quilo de inhame, presente em qualquer feira, não passa de R$5. Por esse e outros motivos, os dois ressaltaram que a pesquisa foi imprescindível para a mudança de hábitos, mas disseram que a informação, apesar de essencial, ainda é de difícil acesso nas comunidades de baixa renda: “Para a gente da periferia não chega informação, e às vezes chega, só que é aquela coisa: você ficou sabendo, se quiser pesquise por conta própria. A gente da periferia é muito jogado. Para você ter noção, a primeira vez que eu fui em um cinema na minha vida eu tinha 18 anos, porque a cultura dos meus pais é como eu falei, final de semana é churrasco, pinga e todo o resto”, contou Paçoca.
Além dos hábitos culturais e do difícil acesso à educação alimentar, outro empecilho para o avanço da luta pelos direitos animais na periferia é o tempo, ou sua falta, como explica o casal: “Elas (as pessoas) querem tudo na hora, e na alimentação vegana, se você não tem dinheiro, você tem que preparar, você leva mais tempo, dá trabalho ... Então, às vezes, a pessoa de baixa renda vai falar: - Olha, trabalhei o dia inteiro de servente, de pedreiro. Saí às seis da manhã, cheguei às seis da tarde. Vou chegar em casa, você acha que vou preparar um queijo vegano? Vou preparar um strogonoff? Vou cozinhar um inhame, fazer um creme de leite? Vou hidratar a carne de soja? Vou refogar? Vou fazer meu strogonoff para depois comer com arroz e feijão? - Não, essas pessoas não querem isso, as pessoas querem uma coisa prática. Ela quer ter o arroz, o feijão e a linguiça frita”.
Shazam e Paçoca, que antes trabalhavam com espetáculos de mágica e circo voltados para o público infantil, também disseram que a adoção do veganismo veio com a pandemia, quando já não havia como trabalharem e se manterem: “A gente tinha uma ideia de que ser vegano era coisa de rico, coisa de gente que tinha dinheiro, e a gente falou: Não, mas não pode ser assim, coisas veganas são todas as frutas, legumes, sementes, grãos, então vamos nos alimentar disso que a gente vai economizar, vamos evitar os industrializados, vamos virar veganos! Foi aí que começou a nossa busca pelo veganismo, aí a gente compreendeu que o veganismo não era só uma dieta, que a parte da alimentação que você não consome nada de origem animal era só uma parte do veganismo, depois vinha todas as outras questões. É um estilo de vida, um posicionamento político”.
Prato vegano preparado pelos criadores do Vegano Pobre (Reprodução/Via Instagram)
Esse caminho tem sido seguido por vários segmentos da população, especialmente os preocupados com questões ideológicas a respeito do consumo da carne, seja pelos direitos dos animais, seja pelas questões ambientais. Substitutos da carne como a planta Ora-pro-nobis, também conhecida como ‘’carne de pobre’’ (porque contém uma grande quantidade de proteínas), ou até mesmo a casca de banana (presente em diversas receitas veganas), demonstram que existem, sim, meios de manter as tradições vivas sem prejudicar a luta pelos direitos animais, e nem mesmo, o bolso.
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