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Luiz Attié e Sofia Kercher

Periferia e pandemia

Atualizado: 26 de nov. de 2020

A dinâmica da pandemia nas periferias do Brasil


Por Luiz Attié e Sofia Kercher da Silva


[Foto: Silvia Izquierdo/ AP/ Valor Econômico]
“O vírus não vê cor, classe ou gênero”.

Essa é uma constatação que aparece em toda crise de saúde pública. Apesar de, cientificamente, fazer sentido, analisaremos o porquê de ela estar equivocada socialmente, analisando a situação da pandemia na periferia ao longo do tempo.


Existem apenas uma par de coisas possíveis que, por indivíduo, podem ser feitas contra uma doença como o Coronavírus. Essas são relacionadas, em sua maioria, à higiene: lavar as mãos, usar máscara, não tocar no rosto. Existe, contudo, a principal e mais eficaz para evitar a proliferação da doença: isolamento social. Ficar em casa só sair se estritamente necessário, não encontrar com outros e evitar aglomerações.


Em um país como o Brasil, onde as classes C, D e E correspondem a mais de 85% da população, o acesso à água, a compra de máscaras e, principalmente, o isolamento social se tornam um privilégio de classe. Com muitos trabalhadores sem acesso a uma quarentena remunerada e sem a possibilidade de home-office ou teletrabalho; e com partes das periferias sem saneamento básico, a obrigação de se expor diariamente transforma os números quando olhamos especialmente para as periferias: territorializando e racializando a pandemia.


Neste texto, convidamos Maria José Menezes, também conhecida como Zezé, ativista do movimento negro, feminista, bióloga e mestra em patologia humana pela UFBA, para analisar a pandemia da Covid-19, e como ela afetou as periferias do Estado de São Paulo.


No Início

“O primeiro diagnóstico no Brasil foi de uma mulher branca de classe média que infectou a trabalhadora doméstica.” Com essa frase, Zezé já nos mostra a dinâmica inicial do vírus ao chegar no país. Retornando do feriado de carnaval da Europa- especialmente da Itália- e Ásia, a classe média regressava aos grandes centros urbanos do Brasil, trazendo com ela os primeiros casos da Covid-19.


Seja na ida ao mercado, na entrega de comida ou dentro de casa, os moradores da periferia convivem com essas pessoas. As que se recusaram a ficar 14 dias em isolamento após a volta, as que obrigaram as trabalhadoras domésticas de terceira- idade a vir trabalhar para desfazer suas malas de viagem, as que, pelo cansaço do fuso-horário europeu, pediram IFood a semana inteira expondo todos os entregadores.

“Nesse início você já tem uma radiografia de como o vírus vai se comportar na sociedade brasileira.”, diz Zezé.

A Pandemia

A crise, afinal, chegou ao Brasil. Os primeiros casos isolados viram centenas que rapidamente se transformam em milhares, e a quarentena é decretada no Estado de São Paulo. Isolamento social é a única manter de conter o alastramento maior da doença, declaram os especialistas em saúde. A economia terá de se adaptar, e as empresas permitem o trabalho de casa. Logo, as fileiras do mercado que ora vendiam papel higiênico e enlatados se transformam em cenas de um filme distópico, vazias após 10 minutos de re-estocagem. Máscaras e álcool em gel, nem se fala. O mundo virou de ponta cabeça, e a classe média tenta de toda forma ficar o mais segura possível. As classes altas se isolam em suas propriedades particulares intocáveis.


E a periferia?

Sem acesso a uma quarentena remunerada, forçada diariamente às ruas em busca de emprego ou para trabalhar, sem acesso aos materiais adequados de segurança, o vírus se alastra e encontra suas principais vítimas. “Uma parcela da sociedade consegue fazer home office e utilizar todos os mecanismos de prevenção e de tratamento. A outra não tem condições sanitárias e de assistência qualificada para que o diagnóstico, tratamento e prevenção sejam efetivos”. Zezé também reitera que a maior falácia da pandemia é a democratização do vírus. Ela não ocorre de forma homogênea, justamente por essa estratificação da sociedade que permite condições melhores de precaução e tratamento aos mais economicamente favorecidos. A periferia, portanto, estava vulnerabilizada de muitas formas.


Mas afinal, quem é essa periferia? Zezé explica: “É sinônimo de população negra”, isso quando falamos da cidade. No interior do país, são as populações quilombolas, indígenas, extrativistas e ribeirinhas: “é um quadro geral”.


O Estado

Quando falamos do Governo Federal na pandemia, compreendemos um pouco mais o porquê dessa previsível dinâmica não ter sido evitada. Fazendo alegações que diminuíram o Coronavírus, chamando-o de ‘gripezinha’; promovendo aglomerações com seus apoiadores e recusando a utilizar a máscara de maneira correta, o presidente Jair Bolsonaro estabeleceu um exemplo irresponsável para o brasileiro. “Você tem um quadro político desastroso e isso é um determinante de como a pandemia se estabeleceu e a dinâmica de transmissão no país”, comenta Zezé.


Com o setor de saúde brasileiro negligenciado há anos, o SUS fez o que pode. “Ele é uma conquista da sociedade, é uma medida civilizatória da sociedade brasileira. Uma das poucas”. Sem ele, a pandemia teria tomado conta do país de maneiras inimagináveis. Mas sem recursos e investimentos, “a periferia faz o ‘nós por nós’. Dentro das possibilidades, elas fizeram e fazem o possível, mas elas não têm as estruturas”, declara a bióloga.


[Foto: Getty Images]

Saúde não é um favor, é um direito

Agora, com as coisas retomando ao novo normal, o pior ainda não passou. O Brasil ainda tem números exorbitantes de contaminação e mortes, que escancaram o projeto de genocídio da população negra e periférica, diz Maria José. Para ela, não é só o vírus que mata. “Você teve uma série de pessoas que morreram por falta de assistência médica, quadros de tratamento de câncer e outras doenças. Toda essa desestrutura do sistema médico está causando uma maior morbidade, um maior adoecimento, e mortalidade”. Precisa haver uma mobilização, conjunta e organizado na sociedade, para dar um basta nesse quadro.


Caso não, o estrago causado pela pandemia será apenas mais um dos muitos que virão pela frente. Declara: “é importante prestar atenção nas periferias porque elas são parte da sociedade. Cuidar de todos e de todas é um sinal de avanço civilizatório. Não é bondade, não é piedade. É fundamental e necessário”.


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