Conversamos com Silvio Porto, ex-diretor da CONAB, para entender o que está deixando a comida mais cara e porque cada vez mais gente passa fome no Brasil
Por Guilherme Valle e Gabriela Lima
“O alimento assim, a gente sempre vai no mais barato, que está na promoção. Carne nem pensar, a carne está um absurdo, tem hora que a gente compra uma carne mas não é igual antes, né. Ficava comendo umas pecinhas de carne, fazia um churrasquinho.” Esse é o relato de Edson Corrêa que mora no Jardim Capela e trabalha como gerente de uma lanchonete, ele continua: “Agora não, tem que ficar comendo uma linguiça, um frango, que também já está aumentando, um ovo. O arroz tem que escolher o mais baratinho né, o que estiver na promoção você compra. As coisas estão aumentando demais, nessa semana você vai no mercado na outra já está outro preço. As frutas estão caras, os legumes também. Então a gente que tem que ficar pesquisando aonde está mais em conta, e assim a gente vai vivendo né…”
Ele não é o único a enfrentar essa realidade: segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan, são 116 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar: caracterizada por uma alimentação inconstante, ou de má-qualidade. Desses, pelo menos 19,1 milhões enfrentam diariamente a fome.
Com a inflação de alimentos acumulada de 12,54% nos últimos 12 meses, segundo o levantamento de setembro do IBGE, a comida tem ocupado uma parcela cada vez maior do orçamento familiar. Para entender um pouco melhor essa situação conversamos com Silvio Porto, professor da UFRB e ex-diretor da Companhia Brasileira de Abastecimento, a CONAB: empresa pública responsável por constantemente analisar a conjuntura agrícola do país e operacionalizar alguns programas voltados para a agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que garantia ao pequeno agricultor a renda da sua produção:
Tendo em vista que você esteve à frente da CONAB entre 2003 e 2013, poderia nos explicar qual a função da companhia e como isso impactava no que chega à mesa do brasileiro?
Silvio Porto - A CONAB atua no pós-plantio. Ela tem um braço que estava na minha diretoria quando eu estava lá e que segue na diretoria [atualmente] que faz toda a análise da conjuntura dos principais produtos produzidos no país. A CONAB também faz um acompanhamento da safra agrícola, então ela produz informações de custos de produção, de preços dos alimentos e de volume produzido anualmente. A CONAB tem um papel junto com o IBGE, que também produz informações, que são informações complementares. Então tem o elemento de produção de informação e tem o elemento de incidência na formação dos estoques públicos e para isso, a CONAB tem instrumentos que ela pode atuar de forma passiva… O que significa isso? Quando os preços daqueles produtos que constam na pauta da política de garantia de preços mínimos estão abaixo do preço oficial, do preço mínimo do governo, a CONAB entra comprando esses produtos e traz para formar os seus estoques ou então, a CONAB também tem outro instrumento chamado de Contrato de Opção de Venda (COV) que ela pode fazê-lo de forma antecipada podendo inclusive utilizar desse instrumento como forma de estímulo à produção. Agora é importante dizer que isso também tem limites, a CONAB vai atuar em cima de produtos que são passíveis de serem armazenados e isso reduz significativamente o hall de produtos, por exemplo, a gente falar de produtos que são fundamentais na nossa alimentação que são os produtos frescos como fruta, legumes e verduras… A CONAB não atua com isso, nem em referência a preço mínimo, e muito menos na formação de estoques, então aí há de ter outra política que não existe, no sentido exatamente de fomentar essa produção e fazer com que nós tenhamos maior disponibilidade, de forma a permitir que tenhamos uma alimentação de qualidade. Claro que junto com isso, para além da CONAB, é fundamental que tenhamos distribuição de alimentos nesse país, então são dois elementos fundamentais. Para ter acesso ao alimento precisa existir o alimento, existir a disponibilidade desse alimento e a outra é a condição de comprá-lo, condição de adquiri-lo, principalmente para a grande maioria da população brasileira que, na conjuntura atual, está bastante debilitada pela situação não só da pandemia, mas antes mesmo da pandemia pela crise econômica, pela falta de política efetiva no sentido de inclusão econômica da população brasileira.
O governo insiste na tese de que o auxílio emergencial e a política de isolamento social, aumentaram a demanda por alimentos, o que fez com que os preços subissem e que por isso eles não poderiam fazer nada, afinal se trataria de um problema de oferta e demanda e qualquer intervenção poderia gerar desabastecimento. Essa tese faz sentido?
Eu nunca fui fã da tese de que o Brasil saiu do mapa da fome por uma questão ética, pelo fato de que a FAO considera que abaixo de 5% o país está fora do mapa da fome. Se nós considerarmos 5% da população brasileira, nós estamos falando de 10 milhões de pessoas. Se considerarmos o dado que o Brasil tinha em 2014 de 3,2 milhões de pessoas que ainda estavam em situação de miséria absoluta, nós estamos falando de 6 milhões de pessoas. Então é inadmissível achar que isso é aceitável, para mim, se tiver uma pessoa não é aceitável. Eu sempre fui muito refratário a essa tese, né, mas sem deixar de reconhecer que efetivamente a situação que o país vivia naquele momento é infinitamente superior e melhor do que a que vivemos hoje, isso é inconteste. Então, o fato é que se naquele período tínhamos na faixa de 5-6 milhões, hoje nós temos mais de 19 milhões de pessoas passando fome. Essa é a magnitude.
Como explicar a deterioração da segurança alimentar que já vinha ocorrendo antes da pandemia?
Então, a questão toda é que, pra mim, o que o auxílio emergencial proporcionou é que se nós tivermos efetivamente um processo de justiça social e que assegurem, seja por transferência de renda, seja por emprego formal a possibilidade de que as pessoas recebam pelo menos um salário mínimo mensal, nós teríamos um brutal desabastecimento nesse país. O que a pandemia mostra e o que o auxílio emergencial mostrou é que, se antes nós não tínhamos um problema de desabastecimento é porque as pessoas não tinham a capacidade de compra, essa é a questão fundamental. As pessoas estavam passando fome, estavam em situação de insegurança alimentar. Isso é muito claro. E é verdade que as pessoas ao ficarem mais em casa, passam a fazer mais comida, muda nossa rotina. Agora, não significa que esse é o monte, que essa é a causa, que esse é o motivo. O fato é que o acesso a renda no patamar de 600 reais, para algumas famílias foi inclusive 1200, permitiu que as pessoas pudessem comer melhor, comer mais. Efetivamente, foi isso que aconteceu. E no caso do ano passado, principalmente em relação ao arroz, a gente teve aquele problema sério de que o governo ficou de expectador, não tomou nenhuma iniciativa no sentido de coibir as exportações. Nós exportamos um valor de cerca de 1,7 milhões de toneladas sendo que nós tínhamos uma safra pequena e não tinha nem estoque regulador para regular esse abastecimento. Ali foram dois problemas: não ter estoque da safra anterior, ter uma safra minimamente pequena, ter mais disponibilidade de recursos para comprar arroz e mandar o arroz embora, então aí foi a mistura perfeita para uma crise. E isso está sistematicamente acontecendo há 20 anos. 20 anos que a gente tem a safra do arroz e do feijão estagnada nesse país com tendências a redução. O próprio ministério da agricultura faz uma projeção de que até 2029 o brasil perderá mais ⅔ da área atual de arroz. Hoje nós temos cerca de 1,6 milhão de hectares, a projeção que o Ministério da Agricultura faz para 2029 é que o Brasil vai perder 1 milhão de hectares de arroz. Então, eu fiz um cálculo, considerando a projeção que o IBGE faz do crescimento da população em 2030, porque seria a safra colhida em 2029 e 2030, então considerando 2030, 230 milhões de pessoas e uma redução de 1 milhão de hectares de arroz, nós vamos cair pela metade a disponibilidade de arroz per capita/ano dos 52 kg que está hoje para 27 kg por pessoa em 2030. Essa é a situação que nós estamos vivendo e veja que o próprio Ministério da Agricultura projeta isso e não tem nenhuma política no sentido de barrar ou de fazer com que essa tendência se modifique e dá isso como uma tendência de mercado e que portanto tem que conviver com isso e o aumento da produtividade é o que vai assegurar a perda de área, e portanto não teremos um problema muito sério até lá. É totalmente absurdo como o Ministério da Agricultura pode tratar uma questão tão séria com essa gravidade de forma tão pacífica.
É comum que seja dito que “O Brasil alimenta o mundo”, mas quem alimenta o brasileiro? Os grandes produtores de commodities ou a agricultura familiar?
Essa questão de que “O Brasil alimenta o mundo” é uma grande falácia, é uma narrativa que não condiz com a realidade. Primeiro, porque, à exceção da soja que realmente o Brasil é o maior exportador e é responsável por disponibilizar um volume bastante expressivo no mercado internacional, todos os outros produtos como: trigo, milho e arroz, nós vamos ver que o volume comercializado ele é muito aquém, ou seja, ele não chega a 20% do que é produzido a nível mundial, então o mercado internacional de grãos, à exceção da soja, que de fato como Brasil, EUA e Argentina são os grandes exportadores e há um consumo bastante expressivo no mundo, esses três países acabam tendo uma presença internacional muito expressiva e a relação entre mercado internacional e produção ela é muito grande. Mas no caso do milho, por exemplo, a gente tem aí um mercado na faixa de 200 milhões de toneladas para uma produção anual de 1 bilhão e 200 milhões, então o trigo é bem menos que isso, ou seja, é importante dizer que há uma relação de autonomia muito maior do que uma relação de mercado internacional, porque arroz, por exemplo, tem um mercado internacional muito pequeno. Então, começa aí, o Brasil é um grande exportador de commodities, sim, é verdade, mas o que o Brasil exporta? O Brasil tem essa presença muito forte na soja. A soja é um produto que está muito vinculado a ração e é verdade que essa carne depois alimentará alguém, mas se a gente for considerar o que se transforma em ração e o que se transforma em carne e o que é consumido, a gente vai ver que isso reduz drasticamente. Carne é um produto caro e quem consome numa escala diária são as pessoas que efetivamente tem uma condição de renda bastante razoável, diria assim, pegando pela análise que se faz no Brasil, no mínimo tem que ser classe média pra alta pra consumir carne todos os dias, porque, no Brasil, se a gente tem aqui uma relação de mais ou menos 50 kg per capita/ano, as classes C, D e E, sobretudo A, B e C consomem talvez 100 kg e as D e E não vão consumir 10 kg por ano, porque não tem grana, tem que entrar na fila do osso pra conseguir consumir uma cartilagem, então na verdade, essa disparidade de renda e essa disparidade de renda é mundial.
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